O  TEMPO DOS ANESTESISTAS

Texto de NILA MARIA COSTA


É o tempo do espaço

É o tempo onde corpos estão sendo modificados e eles estão atentos para esta verdade

Estão atentos também para a verdade dos seus propósitos

É o tempo de uma tríade estabelecida entre a vida, o outro, e os seus próprios pensamentos.
Muitas vezes também é o momento oportuno para uma leitura que se estabelece na atenção em tudo que o cerca...

Sua função é abater o corpo da dor de estar vivo enquanto sofre uma transformação. Cuidar de um  corpo como se  fosse a única coisa que aquele ser possui em sí, pois esta é a sua máxima possibilidade naquele momento. Aquele corpo merece respeito e é por este motivo que ele existe ali - para honrar aquela parte do ser.  E é naquele  tempo que muitas vezes  se  percebe a vida em sua expressão mais radical.

O tempo do anestesista paira entre um mundo e outro. Há momentos em que tudo esta calmo e ele pode olhar para sua vida -  nada mais há para fazer  por mais algum tempo naquela sala escura e fria. Escura e fria pela ausência de sol.  Então muitas vezes eles  podem  se dedicar a prática da leitura.
Tenho a fantasia de que os anestesistas gostam de ler. Isso por causa de uma amiga  anestesista que já leu mais livros  durante o seu trabalho do que fosse possível para qualquer outra pessoa trabalhando ( talvez os bibliotecários também possam estar incluídos nesta categoria ...) ; porque o tempo do anestesista é longo. E curto. É uma intersecção entre três mundos e esta habilidade trapézica   de estar em três lugares ao mesmo tempo só pode ser conferida a poucos.

Conheço alguns anestesistas muito cultos. A maioria o é. Não sei se porque podem ler mais  ou se porque possuem esse dom que a profissão lhes conferiru:   trabalhar com o sono do corpo, um estado indistinto do ser humano, o sonho induzido, quando se monitora a linha tênue da solidão. Esta solidão compartilhada os transforma em  seres interessantes. Nada fazem e tudo realizam para que a ação em si possa ser consumada. Demiurgos do outro. E de si mesmos, enfim.

Então que seja doce, como diz Caio*, que seja doce mil vezes por dia, este estado tripartite das verdades da vida, onde o sono profundo do outro os lembra a sua própria inconsciência; o labor  ativo e pragmático de um segundo sobre a superfície física do corpo inerte e insconsciente os convoca para o ato da vida no aqui e no agora. E há ele, o terceiro incluído, que maestra entre os campos da existência de um( paciente) mergulhado no inconsciente  e de outro(cirurgião),  contemplando seu trabalho braçal. Talvez seja um dos atos médicos que mais se aproxime filosoficamente da meditação: estar atento sempre, atuando e compreendendo o funcionamento de quase tudo. Certamente uma visão mais ampliada do mundo.


*Caio Fernando Abreu  no texto “Os dragões não conhecem o paraíso”.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Ritmo de Marca-passo - Ricardo Sobral

ESTUDO ISIS - 2