Série Insuficiência Cardíaca: A-HeFT – HÁ DIFERENÇA NO TRATAMENTO ENTRE NEGROS E BRANCOS?

(http://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMoa042934)



O estudo African-American Heart Failure Trial (A-HeFT), cujo título “Combinação de dinitrato de isossorbida e hidralazina em negros com insuficiência cardíaca”, foi publicado em novembro de 2004 na maior revista de impacto mundial no ambiente médico, o The New England Journal of Medicine. Este estudo veio com a proposta de que haveriam algumas diferenças entre os mecanismos fisiopatológicos envolvendo pacientes negros e brancos dentro da insuficiência cardíaca. Julgavam estas alterações serem a uma menor ativação da enzima conversora de angiotensina e a uma menor biodisponibilidade de óxido nítrico na população negra, estes participantes no remodelamento cardíaco. Pois seria justamente no metabolismo do óxido nítrico que agiriam o nitrato e a hidralazina.

Pois bem, ainda sem entrar no mérito da metodologia e resultados do A-HeFT, analisando apenas o seu referencial teórico, já podemos nos fazer uma pergunta: Mas haveria real diferença entre negros e brancos no tratamento de insuficiência cardíaca? Fazendo uma alusão à outras doenças (abrangendo para outras especialidades), em que outra situação há um medicamento que não se faz em branco por seu resultado ser comprovadamente ruim? Ou vice-versa? Será que realmente só a insuficiência cardíaca seria a premiada por essa diferença na terapêutica? Bem, para responder a essa pergunta, seria o conveniente realizar um estudo no qual, de um lado colocaríamos apenas brancos, e do outro apenas negros, e daríamos a mesma droga, na mesma dose, e então saberíamos se há essa distinção, ou não. Pois bem, o que os autores fizeram? Através de estudos prévios que mostraram diferença em subgrupo etnia quando avaliaram nitrato + hidralazina, julgaram a diferença racial como uma potencial grande verdade e selecionaram APENAS NEGROS para estuda-los no A-HeFT.

Agora, analisando a metodologia, a ideia era avaliar pacientes negros com insuficiência cardíaca importante (CF III ou IV com miocardiopatia dilatada) cujo desfecho primário foi um escore produzido pelos próprios autores que incluíam mortalidade por qualquer causa + 1ª hospitalização por insuficiência cardíaca + mudança na qualidade de vida; e entre os desfechos secundários estavam vários itens: BNP, tamanho do VE, redução na FE, hospitalizações entre outros. Avaliando primeiramente o N, foram obtidos poucos pacientes, 1050, para uma doença onde já se tinha conseguido reduzir um bom número de mortes com o uso do IECA, BRA, beta-bloqueadores e espironolactona (a grande maioria já em uso no estudo, inclusive foi critério de inclusão). A decisão sobre o N da amostra, se faz por algoritmos que dependem da quantidade de eventos esperados. Comparando com o N do estudo SOLVD (1991) – 2569 pacientes - que avaliou o benefício do enalapril na insuficiência cardíaca, numa época onde a mortalidade (eventos) era bastante alta, precisou-se de um número muito grande de pessoas para ter uma forte evidência do seu benefício; no A-HeFT, 13 anos depois, deveriam ter estabelecido um N muito maior, já que os eventos (mortes) passaram a ser cada vez menores com a evolução do tratamento da insuficiência cardíaca. Dessa forma, a diferença encontrada de mortalidade (10.2% no grupo placebo x 6.2% no grupo nitrato + hidralazina, RRR 43%) pode ter sido mero acaso, pois o N foi pequeno. Outro fator para corroborar com esse pensamento, é que o benefício do grupo tratado foi percebido depois de 180 dias de follow-up, já apresentando nessa fase um número ainda menor de pacientes, cerca de 800.

Mas, o mais “fantasioso” do estudo, foi que após ter sido visto uma RRR de 43%, o estudo foi TRUNCADO (mais um na insuficiência cardíaca, como o COPERNICUS de 2001 que estudou o carvedilol – já comentado na postagem anterior). Mas qual o problema do truncamento? Mesmo supondo que o A-HeFT tivesse conseguido um número expressivo de pacientes avaliados, e reduzido enormemente a possibilidade do acaso, mantendo o mesmo percentual de RRR, teríamos que ter um “pé atrás” com o seu resultado truncado. O estudo truncado pode não refletir a realidade, pois o seu resultado foi inicial e pode estar superestimado, dando a impressão de que ele é muito melhor do que realmente é (se realmente for). Além disso, para ter uma melhor análise do impacto de um efeito avaliado, é conceitual ter um número de eventos (no nosso caso foi morte) em torno de 200, entretanto o A-HeFT foi parado com apenas 86 eventos (mortes).

Novamente pegando como comparação o SOLVD (pois não foi truncado), na sua primeira análise houve uma RRR em torno de 33%, mas nas análises subsequentes, foi visto que a tendência do benefício do enalapril caiu para algo em torno de 16%, sendo este valor o seu real impacto na doença.

Não comentarei sobre os desfechos secundários pois os autores só lembraram deles na metodologia, em nada mencionaram nos resultados.

Outra fator contra o uso corriqueiro do nitrato com hidralazina nesse perfil de pacientes, foi o fato de ter elevado bastante o número de pacientes com efeitos adversos (tontura - 29% - e cefaleia - 47%).

Portanto, o A-HeFT pecou quando selecionou apenas negros, pecou quando recrutou poucos pacientes e pecou por ter truncado. Enfim, pode até considerar o nitrato com hidralazina como ter potencial benefício na insuficiência cardíaca avançada, mas não ao ponto de se considerar seu benefício maior em negros em relação aos brancos.


Dessa forma, continuamos pensando que o plano terapêutico para negros e brancos na insuficiência cardíaca deve ser o mesmo!

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