O TEMPO DOS ANESTESISTAS
É o tempo do espaço
É o tempo onde corpos estão sendo modificados e eles estão
atentos para esta verdade
Estão atentos também para a verdade dos seus propósitos
É o tempo de uma tríade estabelecida entre a vida, o outro,
e os seus próprios pensamentos.
Muitas vezes também é o momento oportuno para uma leitura
que se estabelece na atenção em tudo que o cerca...
Sua função é abater o corpo da dor de estar vivo enquanto
sofre uma transformação. Cuidar de um corpo
como se fosse a única coisa que aquele
ser possui em sí, pois esta é a sua máxima possibilidade naquele momento.
Aquele corpo merece respeito e é por este motivo que ele existe ali - para
honrar aquela parte do ser. E é naquele tempo que muitas vezes se
percebe a vida em sua expressão mais radical.
O tempo do anestesista paira entre um mundo e outro. Há
momentos em que tudo esta calmo e ele pode olhar para sua vida - nada mais há para fazer por mais algum tempo naquela sala escura e
fria. Escura e fria pela ausência de sol.
Então muitas vezes eles podem se dedicar a prática da leitura.
Tenho a fantasia de que os anestesistas gostam de ler. Isso
por causa de uma amiga anestesista que
já leu mais livros durante o seu
trabalho do que fosse possível para qualquer outra pessoa trabalhando ( talvez
os bibliotecários também possam estar incluídos nesta categoria ...) ; porque o
tempo do anestesista é longo. E curto. É uma intersecção entre três mundos e
esta habilidade trapézica de estar em três lugares ao mesmo tempo só
pode ser conferida a poucos.
Conheço alguns anestesistas muito cultos. A maioria o é. Não
sei se porque podem ler mais ou se
porque possuem esse dom que a profissão lhes conferiru: trabalhar com o sono do corpo, um estado
indistinto do ser humano, o sonho induzido, quando se monitora a linha tênue da
solidão. Esta solidão compartilhada os transforma em seres interessantes. Nada fazem e tudo
realizam para que a ação em si possa ser consumada. Demiurgos do outro. E de si
mesmos, enfim.
Então que seja doce, como diz Caio*, que seja doce mil vezes
por dia, este estado tripartite das verdades da vida, onde o sono profundo do
outro os lembra a sua própria inconsciência; o labor ativo e pragmático de um segundo sobre a
superfície física do corpo inerte e insconsciente os convoca para o ato da vida
no aqui e no agora. E há ele, o terceiro incluído, que maestra entre os campos
da existência de um( paciente) mergulhado no inconsciente e de outro(cirurgião), contemplando seu trabalho braçal. Talvez seja
um dos atos médicos que mais se aproxime filosoficamente da meditação: estar
atento sempre, atuando e compreendendo o funcionamento de quase tudo.
Certamente uma visão mais ampliada do mundo.
*Caio Fernando Abreu no texto “Os dragões não conhecem o paraíso”.
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