AAS para prevenção primária cardiovascular: 'mocinho' ou bandido?
Há muito que se sabe que a aspirina é um “santo remédio”... Uma medicação barata, de fácil acesso e que desde 1800 e bolinha sabia-se servir para febre, dor e inflamação e que, apesar da propaganda reiterar que “não afetava o coração”, só quase 100 anos depois, descobriu-se seu benefício na Cardiologia.
Baseados nessa descoberta da década de 80, muitos estudos já comprovaram a eficácia da droga na prevenção secundária de eventos cardiovasculares e muitos outros têm tentado extrapolar seu benefício para prevenção primária de tais fenômenos.
Partindo do pressuposto de que pacientes portadores de DM (tipo 1 e 2) possuem um risco de eventos cardiovasculares de 2-3 vezes maior do que a população em geral, alguns trials já fizeram o esforço para demonstrar uma relação benéfica do uso do AAS para prevenção de fenômenos nessa população e na geral, destacando-se o ATT (Antithrombotic Trialists’ Collaboration) que, em 2009, demonstrou uma redução de 12% na ocorrência de eventos graves a custa de um aumento de 50% na taxa de sangramento maior, já sugerindo uma proteção primária controversa (mesmo na população geral). Em paralelo a essa questão, existe, ainda, uma especulação quanto ao papel da aspirina na prevenção de neoplasias, especialmente às do TGI, com ênfase para uma possível redução na incidência do câncer colorretal.
Neste cenário, o trial ASCEND Study Collaborative Group publicado em Agosto/2018, foi um estudo multicêntrico (que envolveu registros regionais de todo o Reino Unido), randomizado e teve por objetivo testar a eficácia e segurança do uso da Aspirina Vs placebo na prevenção primária de eventos cardiovasculares em pacientes com diabetes e sem doença coronariana clínica evidente. Apresentou uma fase inicial de ‘run in’ para, então, randomizar a população (>10.000 pacientes) nos braços do estudo AAS e Placebo para análise subsequente com intenção de tratar. Como desfecho primário, definiu-se pela primeira ocorrência de qualquer “evento vascular grave”: IAM não fatal ou AVC não fatal (excluindo hemorragia intracraniana confirmada) ou morte vascular excluindo hemorragia intracraniana confirmada (ou seja, excluindo HSA, hemorragia intracerebral e outras lesões intracranianas não traumáticas hemorrágicas); como desfecho de eficácia secundário, estabeleceu-se a ocorrência de qualquer câncer do TGI (após 3 anos de seguimento). O desfecho de segurança foi o composto de HIC confirmada, sangramento com risco de visão, sangramento gastrointestinal ou sangramento que resultou em hospitalização, transfusão ou morte.
Após um acompanhamento médio de 7,4 anos, o desfecho cardiovascular composto primário ocorreu em 658 pacientes no grupo aspirina versus 743 no grupo placebo (razão de taxa: 0,88, valor de p: 0,01); já o desfecho primário de segurança (sangramento) ocorreu em 314 pacientes no grupo da aspirina, em comparação com 245 no grupo controle (RRR=1,29); ou seja, apesar de uma redução de 12% na taxa de eventos, houve um aumento de 29% da taxa de sangramentos maiores nessa população, de modo a subestimar o desfecho de segurança em relação a magnitude do benefício. Quanto aos efeitos sobre o câncer, não houve diferença entre os grupos no risco de neoplasia do TGI, nem houve uma sugestão de um efeito emergente com maior tempo de seguimento.
Porém, ainda na fase descrita de recrutamento, mas já após a randomização, o desfecho primário original do estudo foi modificado para inclusão de AIT na definição de evento vascular grave sob o argumento de aumentar o poder estatístico do trial com o aumento amostral (>15mil pacientes). Porém, considerando que a redução de eventos cardiovasculares no grupo aspirina foi motivada, em grande parte, pela redução do AIT, o estudo perde poder para afirmar a assertiva da conclusão de que os benefícios absolutos foram amplamente contrabalanceados pelo risco de sangramento, já que, ao acrescentar o desfecho ao desenho original (com estudo em andamento) deixa o autor mais suscetível ao erro (tipo I).
Desse modo, ter algum benefício descrito não implica no emprego sistemático de alguma terapia; ela precisa ser, também, segura para justificar seu uso, pois todo 'mocinho' tem potencial para ser vilão.
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