Em junho deste ano (2014) foi publicada no  Annals of Internal Medicine uma interessante revisão sistemática comparando as estratégias de controle do ritmo x controle da frequência cardíaca (FC) no manejo dos pacientes com fibrilação atrial (FA). Sabemos que a FA, como importante problema de saúde pública, traz consigo uma associação substancial com mortalidade, morbidade e altos custos para o sistema de saúde. Diante de tantas incertezas na segurança e efetividade das estratégias de controle do ritmo x frequência, o que temos atualmente em termos de evidência científica?
Buscando respostas, os autores escolheram uma série de questões a serem avaliadas: 1) Controle do ritmo x frequência; 2) Medicações usadas no controle da frequência; 3) Controle da frequência estrito x leniente; 4) Terapia não-farmacológica x medicações (controle da frequência); 5) Cardioversão elétrica (CVE) x drogas anti-arrítmicas (DAA) na restauração do ritmo sinusal; 6) Ablação por cateter x Ablação cirúrgica x drogas anti-arrítmicas na manutenção do ritmo sinusal.
A fonte dos dados envolveu as plataformas do PubMed, EMBASE e Cochrane Database, coletados de janeiro de 2000 a novembro de 2013. Como critérios de seleção tivemos ensaios clínicos randomizados, publicados em inglês e que estabelecessem avaliações comparativas entre as estratégias de controle do ritmo x frequência, com terapia farmacológica ou não farmacológica, em adultos com FA. No entanto, devido a escassez de estudos avaliando o controle estrito x leniente da FC e a terapia de ressincronização cardíaca (TRC) x outras terapias de controle do ritmo, foi permitida a inclusão de estudos observacionais para estas análises.
Os desfechos avaliados foram: conversão para ritmo sinusal, manutenção deste, recorrência da FA em 12 meses, desenvolvimento de cardiomiopatia, mortalidade (geral e cardíaca), IAM, hospitalização por causas cardiovasculares, sintomas de insuficiência cardíaca (IC), controle dos sintomas da FA, qualidade de vida, status funcional, AVC ou eventos embólicos, sangramentos e efeitos adversos do tratamento.  
Para cada comparação tratamento e desfecho de interesse, determinou-se a viabilidade de completar uma avaliação quantitativa (meta-análise) com base no volume de literatura relevante, homogeneidade conceitual dos estudos e na integralidade do relato dos resultados. Foi realizada uma meta-análise para os resultados de que pelo menos três estudos relatassem.
Quando analisou-se controle FC x controle do ritmo, todas estratégias foram agrupadas juntas, independentemente se eram intervenções medicamentosas ou procedimentos. Já as comparações entre as intervenções farmacológicas foram agrupadas por classe, sendo que betabloqueadores (BB) e bloqueadores dos canais de cálcio (BCC) foram colocadas no mesmo grupo.
Os procedimentos avaliados foram: CVE, ablação do NAV, ablação da FA por isolamento da veias pulmonares (VP) e os diferentes tipos de procedimento-labirinto. Ainda foram feitas comparações entre medicações x procedimentos. A abordagem escolhida para classificar o nível das evidências  foi a "strength of evidence (SOE)", usada para cada desfecho. Esta leva em consideração o risco de viés, consistência, linearidade, precisão, confusão plausível que poderia diminuir o efeito observado, força da associação (magnitude do efeito) e viés de publicação, sendo graduada conforme a seguinte tabela:

Foram inicialmente selecionadas 10.495 citações, restando cerca de 570 artigos após leitura dos abstracts e 162 estudos após leitura dos textos e exclusão de artigos que não atendessem aos critérios de seleção.
Em relação à mortalidade geral, cardiovascular e AVC, quando comparados controle do ritmo x FC, nos 8 estudos selecionados, não foi encontrado diferença estatisticamente significante que favorecesse um dos grupos. Vale a ressalva de que estes resultados foram ditados por basicamente 2 grandes estudos que não mostraram benefícios de uma estratégia em relação à outra e por pequenos estudos imprecisos (amplo intervalo de confiança), reforçando a hipótese nula. A força desta evidência foi classificada como moderada e os autores descrevem que houve nestes estudos uma grande inclusão de pacientes idosos e com sintomas leves.
Foi ainda feita a ressalva de que o valor de Q para mortalidade geral foi elevado. Mas o que é esse "Q"? Significa teste Q de Cochran, que traduz o método mais utilizado para avaliar a heterogeneidade e parte do pressuposto que os achados dos estudos primários são iguais (hipótese nula) e verifica se os dados encontrados refutam esta hipótese. Se a hipótese nula for confirmada, os estudos são considerados homogêneos (p > 0,05). Mas como chegamos ao nosso conhecido I² a partir do valor de Q? Podemos usar a seguinte fórmula:


  O Q é obtido através de uma complexa fórmula, neste caso já fornecido no texto, e o J representa a quantidade de estudos. O I² pode variar de valores negativos até 100%. Quando o valor for negativo ele é igualado a 0. Interpretativamente, uma escala com um valor próximo a 0% indica não heterogeneidade entre os estudos, próximo a 25% indica baixa heterogeneidade, próximo a 50% indica heterogeneidade moderada e próximo a 75% indica alta heterogeneidade entre os estudos. Com base nesses fundamentos, concluímos que houve uma considerável heterogeneidade em relação aos estudos que avaliaram o desfecho mortalidade, mais um dado que nos faz aderir à hipótese nula.
Em relação à desfechos menos duros, o controle do ritmo foi melhor em termos de manutenção do ritmo sinusal, o controle da FC foi superior em termos de hospitalizações por causas cardiovasculares e não houve diferença em relação à taxa de sangramentos, todos resultados já esperados.
Na análise entre as medicações usadas no controle da FC, um dado interessante: a maioria dos dados são insuficientes ou com baixa força de evidência para afirmar superioridade de uma classe em relação à outra. A exceção foi a comparação entre a digoxina e os BCC, estes últimos superiores, possivelmente pela deficiência da digoxina no controle da FC durante o esforço. Talvez seja a partir de uma extrapolação inadequada desta comparação que postulou-se o mito defendido por alguns de que os BCC são a melhor classe no controle da FC.
Comparando as estratégias de controle da FC estrito x leniente, devido a escassez de estudos (01 ECR de boa qualidade), foram incluídos mais 2 estudos observacionais na análise. De qualquer forma, não houve diferenças estatisticamente significantes em termos de  mortalidade geral e CV, sintomas de IC, hospitalização CV, sangramentos, qualidade de vida ou controle de sintomas.
Foram avaliados 4 estudos na comparação do controle da FC não farmacológico x medicamentos. Foi observado menor FC em 12 meses a favor do grupo submetido aos procedimentos, porém sem diferenças em relação à capacidade de exercício. Estes estudos avaliaram: 1) implante de MP (VVI) + ablação do feixe de His x MP (VVI) + medicações; 2) ablação do NAV + MP (VVI) x medicações. No desfecho mortalidade e eventos CV, não foi encontrada diferença nas seguintes comparações: 1) ablação do NAV + MP (DDD) + medicações x ablação do NAV + MP (VVI); 2) ablação do NAV + MP (VVI) x medicações.
Quanto a conversão para o ritmo sinusal, os 4 ensaios foram unânimes em favor do uso da energia bifásica em relação à monofásica, com alta força da evidência. Comparando CVE com as pás na posição ântero-lateral x ântero-posterior, foi demonstrado um potencial benefício da posição ântero-lateral, com baixa força de evidência. Quanto aos protocolos de energia, o de 360J foi superior ao de 200J monofásico, com alta SOE. Ainda com relação a conversão para ritmo sinusal, houve um potencial benefício em favor da Amiodarona em relação ao Sotalol, mas sem significância estatística e com baixa SOE.
Comparando o isolamento da VP x DAA na manutenção do ritmo sinusal, foi constatado benefício do primeiro, com SOE forte em pacientes com pouca ou sem doença estrutural e com aumento leve ou sem aumento de AE. Apesar da ressalva da grande heterogeneidade (I²=75%) entre os 9 estudos avaliados, todos eles mostram um benefício consistente neste desfecho avaliado.
Os autores então concluem: 1) as estratégias de controle de frequência e ritmo têm eficácia comparável entre os desfechos em pacientes primariamente idosos com sintomas leves de FA; 2) o isolamento da veia pulmonar é melhor que as medicações antiarrítmicas na redução da recorrência da FA em pacientes jovens com FA paroxística e doença estrutural cardíaca leve; 3) pesquisas futuras devem discutir as incertezas relacionadas a subgrupos de interesse e o efeito das diferentes terapias nos desfechos clínicos de longo prazo.

Vimos então uma boa metanálise, que não preocupou-se apenas em agrupar os dados, mas também avaliou objetivamente o nível das evidências encontradas. Além disso trouxe uma importante reflexão sobre as atitudes que tomamos no cotidiano em relação à FA. Às vezes, consolidamos em nossas mentes que determinadas condutas têm um alto grau de evidência, quando, na verdade, as evidências são fracas e insuficientes. Por outro lado, muitas vezes esquecemos que um grande número de evidências aparentemente inconclusivas, concluem que pode não haver benefício de uma determinada conduta sobre a outra. 

Comentários

  1. Excelente postagem! Continuem desconstruindo paradigmas

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  2. Uma ótima postagem, principalmente de uma metanálise...
    E como você mesmo concluiu “por outro lado, muitas vezes esquecemos que um grande número de evidências aparentemente inconclusivas, concluem que pode não haver benefício de uma determinada conduta sobre a outra" porque não optarmos por tratar o paciente, nos questionando qual o grau de sintomas e com a patologia interfere na sua vida. Acho que dessa forma podemos individualizar o optarmos por um tratamento mais eficaz.

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  3. Muito bom! Show... parabéns pela matéria.

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