Série NOACs: RE-LY, o primeiro passo para a nova era da anticoagulação oral
A fibrilação atrial (FA) é a arritmia
mais prevalente no mundo, acometendo cerca de 2-3% de toda a sua população e
incidência em ascensão com o avanço da idade (Tratado
de Doenças Cardiovasculares, Braunwald, 9ªEd, 2013). Os pilares do seu tratamento são a terapia
de controle (de ritmo ou de frequência cardíaca) e a prevenção de eventos
embólicos, através da anticoagulação. Esta até então era feita pelo uso da
varfarina, um antagonista da vitamina K que interfere largamente na cascata de
coagulação (inibe a produção dos fatores II, VII, IX e X e das proteínas C e
S). Além disso, outros inconvenientes são a interação com uma variedade enorme
de alimentos e outros medicamentos, com efeitos imprevisíveis na taxa de
anticoagulação e variação das doses terapêuticas e tóxicas inclusive no mesmo
paciente. O resultado disso é um tempo na faixa terapêutica (TTR – time in
terapeutic range) muito aquém do desejado, com necessidade de dosagem regular
do RNI e ajustes de dose tão frequentes que poderiam causar dor física em assistentes
e assistidos, motivo pelo pode-se dizer que a prevenção de eventos embólicos
era o maior ponto fraco da terapia de FA.
Este
grande empecilho à condução dos casos desta arritmia recebeu um poderoso
upgrade quando a Boehringer trouxe um reforço a esse pilar terapêutico: a
dabigatrana, um inibidor específico da trombina, surgia com a proposta de um
efeito anticoagulante preciso e previsível, com pouca dependência de interação
medicamentosa e sem dependência de controles laboratoriais. E para comprovação
do efeito miraculoso e revolucionário deste nova droga, foi desenhado o estudo
RE-LY.
Grande
ensaio clínico randomizado, multicêntrico (951 centros em 44 países), de grupos
paralelos, envolveu cerca de 18000 pacientes para comparar dabigratrana nas
doses de 220 mg/dia e 300 mg/dia com a varfarina na prevenção de AVC e eventos
embólicos em pacientes com FA. O objetivo primário de não-inferioridade das
duas doses de dabigatrana para a prevenção destes eventos (com limite superior
de RR tolerável de até 1,46), além de análise de segurança, por meio de eventos
hemorrágicos maiores.
Ao
fim de 2 anos de randomização, 18113 pacientes haviam sido alocados nos 3
diferentes grupos, com uma idade média de 71 anos, peso médio de 82 Kg, FA
paroxística, persitente e permanente igualmente representadas, com CHADS2 de
baixo, intermediário e alto risco também equilibrados. Houve uma taxa de
abandono das terapias de 20,7%, 21,2% e 16,6% nos grupos 220 mg, 300 mg e
varfarina, respectivamente.
A
análise do desfecho primário (por intenção de tratar – ITT) provou não
inferioridade das duas doses de dabigatrana em relação à varfarina, [dabigatrana
220 vs varfarina RR 0,91 (IC 95% 0,74-1,11, P<0,001) / dabigatrana 300 vs
varfarina RR 0,66 (IC 95% 0,53-0,82, P<0,001)]. Aqui cabe uma ressalva,
afinal é sabido que a ITT aproxima os resultados dos grupos, o que é protetor
da hipótese nula em ensaios de superioridade mas favorece a hipótese
alternativa em estudos de não-inferioridade. A análise mais apropriada seria
per-protocol ou as-treated. Leitura adicional sugerida:
E o bom nem sempre é inimigo do ótimo. Além de
não-inferior, a dabigatrana 300 mg/dia foi superior à varfarina com uma
espantosa redução relativa do risco (RRR) de 0,34 (IC 95% 0,53-0,82,
P<0,001). Antes de prosseguir, é importante ressaltar que esse RRR pode ser
ainda melhor, ao se observar que o TTR dos pacientes do grupo da varfarina foi
de formidáveis 64%, quando os estudos citam TTR no mundo real que podem girar
em torno de 30-40%.
Ao se observar a redução absoluta do risco
(RAR) de 0,58 da dabigatrana 300 mg/dia em relação à varfarina, pode-se pensar
que esse benefício não é tão imponente como pareceu a princípio (NNT 172, IC
95% 125-322). Mas deve-se ter em mente que todos os grupos obtiveram uma
pequena taxa de eventos (1,53% dabigatrana 220, 1,11% dabigatrana 300 e 1,69%
varfarina), o que pode ser explicado pelo fato de todos os grupos estarem
recebendo tratamento eficaz e pela prevalência razoável de pacientes CHADS2
baixo, portanto sob menor risco de eventos embólicos. A RAR é influenciada pelo
perfil de gravidade dos paciente da amostra, enquanto a RRR é uma
característica inerente ao tratamento. 34% de RRR será 34% em qualquer perfil
de gravidade.
Na
análise de desfechos de segurança, não houve diferença estatisticamente
significante entras as taxas de sangramentos maiores dos três grupos, com a
dabigatrana 220 mg/dia obtendo significância na redução deste evento (2,71%
dabigatrana 220 vs 3,36% varfarina, RR 0,8, IC 95% 0,69-0,93, P=0,003). No
entanto, observa-se apenas uma tendência a significância entre as duas doses de
dabigatrana (3,11% dabigatrana 300 vs 2,71% dabigatrana 220, RR 1,16, IC 95%
1,0-1,34, P=0,052), o que reforça a segurança de ambas as doses no que diz
respeito aos efeitos maléficos hemorrágicos.
Concluindo,
o pioneirismo da dabigatrana abriu portas para a vislumbre de um tratamento
menos errático para os paciente com FA, não só com uma comodidade posológica
que simplifica e sistematiza a anticoagulação, mas com eficácia na redução dos
eventos embólicos sem incremento de risco de eventos hemorrágicos. Sem dúvida,
um grande passo para o conforto e outro maior ainda para eficiência da terapia
da fibrilação atrial.
Muito bom... pacientes que sofrem de FA, agora tem essa comodidade devido ao grande avanço. Parabéns pelo post!
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