O sal e doenças cardiovasculares, culpado ou inocente?



Os termos sal e sódio (1 g de sódio = 2,5 g de sal) são frequentemente usados de forma intercambiável. No entanto, com base no peso, o sal compreende 40% de sódio e 60% de cloreto, sendo a sua principal fonte, a dieta (90%). Antes de entrarmos no cerne do problema, é necessário um breve contexto histórico. Por milhares de anos, a única fonte de sal para os humanos era o mineral encontrado naturalmente nos alimentos, sendo a ingesta estimada em 0,5g/dia por cada indivíduo. Com o passar dos séculos, após a descoberta de suas propriedades conservantes, há cerca de 5.000 anos, o sal gradualmente se tornou a mercadoria mais tributada e comercializada no mundo. A partir disso, a alta ingesta de sal, por várias vias complexas e interconectadas, está relacionada a danos nos órgãos-alvo, resultando em doenças cardiovasculares e outras doenças crônicas. Mas os estudos observacionais e randomizados concordam com esta afirmação? 
O principal problema metodológico dos estudos epidemiológicos envolvendo o tema está na avaliação da ingestão de sal. O clássico estudo INTERSALT (Estudo Internacional de Sódio, Potássio e Pressão Sanguínea), utilizando métodos padronizados para coletar urina de 24 horas e medir a pressão arterial (PA) em 10.079 adultos de 32 países demonstrou uma associação direta entre a ingestão de sal, medida pelo sódio urinário de 24 horas e a PA. Esse achado foi confirmado por vários outros grandes estudos epidemiológicos e experiências naturais em nível populacional. Quase todas as metanálises mostraram quedas significativas na PA com a redução da ingestão, embora a extensão da queda da PA tenha variado, o que se deve em grande parte, a diferentes critérios de inclusão. Entretanto, quando analisamos estudos randomizados e metanálises que incluíam pacientes com mudanças agudas na ingesta de sal e analisavam os seus efeitos em curto prazo, observamos discreto ou até efeito nulo na redução da PA. Reduções grandes e agudas na ingestão de sal são conhecidos por desencadear mecanismos compensatórios, como aumentos na atividade da renina plasmática e angiostensina II, estimulação do sistema nervoso simpático e redução do volume plasmático, aumentando a concentração lipídica plasmática. Portanto, o foco está a médio e longo prazo. Não sejamos imediatistas. Excluindo estudos de restrição de sal a curto prazo, a redução mesmo que modesta da ingestão de sal causa reduções significativas da PA em indivíduos hipertensos e normotensos, consistente com as orientações de saúde coletiva. Além disso, ensaios demonstraram que a queda da PA varia com a ingestão de sal, de modo que quanto menor a ingestão de sal, menor a PA.
A associação linear direta não é apenas evidente na PA, mas também em outras doenças cardiovasculares (DCV) e mortalidade. No entanto, alguns estudos recentes de coorte e ecológicos provocaram controvérsia e confusão, pois os pesquisadores relataram associações em forma de J ou U, ou seja, a ingestão baixa e alta de sal está associada a um risco aumentado de eventos cardiovasculares. Alguns pontos merecem ser destacados. Indivíduos doentes comem menos comida e, portanto, menos sal, ou foram aconselhados a reduzir a ingestão de sal devido à doença. Isso leva à causalidade reversa, o que significa que a associação observada entre uma menor ingestão de sal e maior risco de DCV é explicada pelas doenças subjacentes desses indivíduos, em vez de sua ingestão de sal. Outra grande limitação é o uso de métodos tendenciosos para avaliar a ingestão habitual de sal dos indivíduos, como amostras isoladas de urina. A concentração de sódio na urina varia de acordo com o consumo de líquidos, hora do dia, duração e volume de coleta, postura do participante, hora e quantidade de sal consumido na última refeição. Quando mensurada com múltiplas excreções urinárias não consecutivas de sódio por 24 horas (padrão-ouro), a relação entre ingestão de sal, eventos cardiovasculares e mortalidade por todas as causas foi direta e linear (figura 02).






Figura 02.  Associação entre os métodos de coleta de ingesta de sódio e mortalidade.


Ensaios clínicos randomizados de longo prazo sobre o efeito da redução de sal nas DCV são extremamente escassos porque são difíceis de realizar, devido a preocupações éticas de sujeitar os participantes a altas quantidades de sal e a vários desafios metodológicos, como conformidade com menor consumo de sal durante muitos anos em ambientes onde os alimentos processados são altamente salgados, a contaminação cruzada entre os grupos de estudo e, por fim, o grande tamanho da amostra que seria necessário para obter poder estatístico suficiente.
Então, quanto de sal eu posso ingerir? 
A sétima diretriz brasileira de hipertensão arterial afirma que a ingestão de 5g / dia de sal está associado a redução da PA. A ingestão recomendada pela Organização Mundial de Saúde é 5 g/dia sendo uma redução adicional a 3 g / dia ainda mais benéfica. O Instituto Nacional de Excelência em Saúde e Cuidados do Reino Unido recomendou 3 g / dia como meta de ingestão de sal na população a longo prazo. Nos Estados Unidos, 4 g / dia foi recomendado para 50% da população, incluindo negros, indivíduos com mais de 50 anos, hipertensão, diabetes ou doença renal crônica. A mensagem é: ingerir o menos possível para manter o sabor dos alimentos, ou melhor, apenas uma “pitada de sal”




Referencias bibliográficas:
1.      INTERSALT Cooperative Research Group. INTERSALT: an international study of electrolyte excretion and blood pressure: results for 24 hour urinary sodium and potassium excretion. BMJ 1988;297:319–28.
2.      Graudal NA, Hubeck-Graudal T, Jurgens G. Effects of low sodium diet versus high sodium diet on blood pressure, renin, aldosterone, catechol- amines, cholesterol, and triglyceride. Cochrane Database Syst Rev 2017;4:CD004022. 
3.      He FJ, Ma Y, Campbell NRC, MacGregor GA, Cogswell ME, Cook NR. Formulas to estimate di- etary sodium intake from spot urine alter sodium- mortality relationship. Hypertension 2019;74: 572–80. 
4.      He FJ, Campbell NRC, Ma Y, MacGregor GA, Cogswell ME, Cook NR. Errors in estimating usual sodium intake by the Kawasaki formula alter its relationship with mortality: implications for public health. Int J Epidemiol 2018;47:1784–95.  
5.      He FJ, Tan M, Ma Y, MacGregor GA. Salt Reduction to Prevent Hypertension and Cardiovascular Disease: JACC State-of-the-Art Review. J Am Coll Cardiol. 2020;75(6):632-47.



            



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