CESAR trial: a linha torta entre azáfama e ludíbrio
Num artigo que pareceu
escrito aos trancos e barrancos, os pesquisadores do estudo CESAR se propuseram
à audaciosa tarefa de comprovar a eficácia, custo efetividade e custo utilidade
de uma terapia digna tanto de respaldo quanto de polêmica. A membrana
extracorpórea de oxigenação (ECMO), concebida na década de 50 por dr John
Gibbons e cols como uma terapia de suporte para paciente com disfunções
cardiopulmonares graves, nunca foi devidamente testada e sua aplicabilidade no
meio hospitalar sempre foi restrita.
O CESAR publicado em 2009 considerou um protocolo
randomizado, aberto, multicêntrico e pragmático tendo como variáveis preditoras
a ECMO x terapia convencional, numa população com síndrome do desconforto
respiratório agudo (SDRA).
O cálculo de tamanho amostral, para um poder de 80%
para detecção de RRR em 25% com alfa de 5%, surpreende pela mortalidade
esperada no grupo controle de 70%, quando a literatura relata taxas que
alcançam 58% na pior das hipóteses. Além disso, a meta estipulada de 120
pacientes por grupo foi revisada durante o curso do estudo pela baixa
quantidade de inclusão, com ajuste para 90 por grupo. Não soou bem.
Cegar tal estudo seria impossível pela natureza do
tratamento empregado. A randomização,
como já bastante debatido, confere igualdade entre os grupos para que a única
diferença seja de fato a terapia empregada.
Os paciente randomizados para ECMO foram todos
transferidos para um único centro especializado em ECMO, o Glenfield Hospital.
Já os paciente randomizados para terapia padrão foram transferidos para outros
hospitais, onde seriam conduzidos de forma pragmática com "a melhor
terapia possível". Aqui cabe um grande parêntese, pois o que está sendo
comparado é a terapia alternativa conduzida de forma organizada em um dos melhores hospitais da Inglaterra contra uma terapia convencional conduzida sem nenhum
tipo de protocolo de tratamento e em hospitais selecionados sem detalhamento,
sendo impossível garantir a qualidade da assistência ofertada ao grupo
controle.
Apesar de um jogo de muitas idas e vindas num texto
que desafia a concentração e a linha de raciocínio, o prejuízo ao trabalho fica
evidente na tabela que descreve os tratamentos adotados em cada um dos grupos,
com 93% do grupo ECMO recebeu ventilação protetora contra 70% no grupo terapia
convencional. Vale ressaltar que a
terapia padrão para SDRA é baseada na ventilação protetora e constitui, até
hoje, a única modalidade comprovadamente capaz de interferir positivamente na
mortalidade deste grupo de pacientes, sendo o cerne da terapia convencional.
Não prover ao máximo a terapia padrão para o grupo controle é inconcebível e,
num estudo com menos de 100 pacientes por grupo, uma diferença tão importante
dificulta ainda mais qualquer conclusão sensata diferente de descrença.
A adição de incapacidade aos 6 meses ao desfecho
morte tornou o impacto do desfecho primário muito menor, uma vez que
incapacidade seria definida de forma subjetiva. Teria sido melhor considerar
apenas morte. Com esta combinação (e com a benevolente consideração de que 3
pacientes do grupo controle sem dados sobre desfecho foram considerados como
incapazes), foi alcançado uma redução relativa do risco de 31% (53% de desfecho
primário no grupo controle contra 37% no grupo ECMO) com p estatisticamente
significante, ainda assim com intervalo de confiança muito amplo - RRR 31% (IC
95%, 0,05 - 0,97). O cálculo de NNT para este resultado seria de 6,25 com um IC
95% indo de 2 - 62. Ao ser considerado apenas morte, desfecho isento de
subjetividades, a significância estatística nem foi alcançada, tornando toda a
avaliação de custos efetividade/utilidade fútil. E toda essa consideração sem
levar em conta que o estudo foi desenhado para ter poder estatístico com mortalidade
de 70% no grupo controle, o que não foi alcançado. Dessa forma um novo cálculo
amostral demonstraria a necessidade de uma amostra maior para detectar alguma
diferença estatisticamente relevante.
Mas o artigo foi além e quis fazer alguém acreditar
que além de eficaz (o que não é), a ECMO é custo efetiva/útil, com valores da
ordem de centenas de milhares de dólares. Custos efetividade/utilidade estes
calculados levando em conta um follow-up aos 6 meses em que o fator decisivo
para evitar o viés de aferição foi o muito comentado cachecol. Para fechar com
chave de ouro, e na verdade até esperado, 3 dos autores do artigo são membros
de serviços de ECMO. Esperado porque é improvável que um artigo com tantas
falhas metodológicas e vieses de desempenho tenha sido escrito de forma tão
confusa (e publicado) de forma inocente.
Após uma leitura cansativa de um trabalho que já nas
primeiras páginas "cheirou mal", a conclusão foi de que os
pesquisadores (ao menos) ficaram confiantes de que a ECMO é um tratamento
efetivo para SDRA. Justo.
O que me preocupa muito é como um trial deste nível consegue ser publicado numa revista de peso...isso me deixa bastante desconfortável e me faz questionar ainda mais as "verdades" da nossa ciência...estariamos realmente nos baseando em evidencias cientificas verdadeiramente confiaveis nas tomadas das nossas decisoes?
ResponderExcluirCara Viviane. Em nosso pouco tempo de imersão em análise crítica de artigos científicos, um dos primeiros fatos que nos saltam aos olhos é como é fácil dizer o que se quer num artigo; a segunda é como passa a ser difícil acreditar de imediato numa evidência. E deve ser assim mesmo pois, confiável ou não, ela depende da nossa aceitação para ser implementada.
ResponderExcluirEm uma mesa redonda sobre novas tecnologias diagnósticas no Congresso Bahiano de Cardiologia de 2013, o Dr Luis Correia (não só um dos nossos grandes mentores mas também uma autoridade em medicina baseada em evidências no País e no Mundo) concluiu que em cardiologia nós estávamos bem servidos quanto a arsenal diagnóstico. Muito mais importante era refinarmos o nosso conhecimento sobre tudo que já temos e aplicarmos este arsenal aos melhores cenários.
Esta se torna a grande questão da medicina da modernidade: o abandono dos dogmas para a redefinição de paradigmas bem embasados. Se estamos tomando decisões baseadas em evidências confiáveis ou não, a nossa habilidade em julgar tais evidências responderá.