Série DAC: ESSENCE trial e a (desnecessária) superioridade da enoxaparina
1988 trouxe para o
cenário das SCAs uma terapia revolucionária: a anticoagulação com heparina não
fracionada (HNF), estudada por Théroux e cols, mostrava-se capaz de reduzir
infarto e angina refratária em paciente com angina instável. Terapia de
eficácia comprovada, porém com os conhecidos inconvenientes inerentes àquela
heparina: interferência por plaquetas ativadas, anticoagulação errática,
necessidade de monitorização sistemática do TTPa e incidência aumentada de
trombocitopenia induzida por heparina. O advento da heparina de baixo peso
molecular (HBPM) e os respectivos trabalhos que demonstraram seus benefícios
levantaram uma indagação interessante: "HBPM é melhor que HNF no contexto
de SCA?"
A resposta para
esta questão veio em 1997 por meio do Essence trial, que estudou 3171 paciente
em 179 centros distribuídos em 10 países. Conduzido de forma randomizada,
duplo-cega e com o emprego do conceito de double-dummy, o estudo comparou HNF e
HBPM em paciente com diagnóstico de AI.
Mas o que seria o
double-dummy? O grupo da HNF receberia uma infusão EV contínua de HNF, enquanto
o grupo HBPM receberia clexane SC de 12/12h. Não seria difícil perceber quem é
de que grupo. A solução foi infusão EV contínua de placebo para o grupo clexane
e placebo SC de 12/12 para o grupo de HNF. O double-dummy seria o emprego do
placebo em ambos os grupos para manter o cegamento adequado do estudo.
Em relação a
sangramentos, não houve diferença estatisticamente significante quando foram
considerados os maiores; quanto aos menores, estes foram significativamente
maiores no grupo do clexane, porém foram contabilizados sangramentos
relacionados à punção do próprio anticoagulante, tornando essa significância
mais amena.
Em relação ao
combinado de morte, infarto, re-infarto e angina, o artigo foi capaz de
detectar redução significativa no grupo HBPM. Houve um RRR de 16% em 14 dias
sustentado aos 30 dias, com um Odds Ratio (OR) de 0,8 (IC 95% 0,68-0,96). Aqui
cabem ressalvas importantes. Primeiro: o emprego do OR deve ser resguardado
para a análise de estudos retrospectivos (de onde se parte do desfecho em
direção ao fator de risco) e para cálculo empregado em análise de regressão
logística; segundo: conforme a incidência de eventos aumenta, o OR tende a
supervalorizar o valor da terapia, principalmente quando esta incidência vai se
elevando além de 10%. O resultado disto neste trabalho (no qual a incidência do
desfecho primário foi de 19,8% no grupo HNF e 16,6% no grupo HBPM) foi um RR
0,84 sem IC (com RAR 3,2%, o que daria um NNT de 31 - impacto moderado para
desfechos não fatais), e um OR de 0,80 com IC 95% 0,68-0,96, que não pode ser
interpretado como impacto de redução de risco nem considerado para cálculo de
IC de NNT. Um OR de 0,80 não equivale a um RR 0,84. Observações feitas, tal
erro não invalidou a superioridade demonstrada pelo estudo (para a alegria da
comunidade médica).
(leitura adicional sugerida)
Mas analisando
retrospectivamente, superioridade seria mesmo necessária contra uma terapia
difícil de manejar como HNF? Não inferioridade não seria suficiente para o
emprego de uma terapia tão mais cômoda? Pode-se fazer um paralelo com a anticoagulação
crônica de pacientes com FA, cujas vidas (e as dos médicos que os tratam) se
tornaram muito mais fáceis pela não inferioridade dos NOAC. Que bom que houve
uma conclusão favorável à redução de desfechos por parte da HBPM, mas só em não
ser pior seu uso já estaria justificado.
Comentários
Postar um comentário