POR QUE O DANISH TRIAL NÃO É, ASSIM, UMA “DESCOBERTA DA PÓLVORA”?
Publicado no NEJM em agosto
de 2016 e apresentado recentemente no Congresso Europeu de Cardiologia, o
DANISH trial questiona o benefício do uso do cardiodesfibrilador implantável
(CDI) como profilaxia primária em portadores de Insuficiência cardíaca grave de
origem não isquêmica.
Nos portadores de IC de etiologia isquêmica, o benefício do
uso do CDI já foi bem estabelecido através de diversos ensaios clínicos , com
redução estatisticamente significante tanto de morte súbita cardíaca atribuída
a eventos arrítmicos, quanto da mortalidade geral. Entretanto em relação à
doença não isquêmica, os estudos até então publicados não mostraram de forma
consistente o mesmo benefício do CDI na redução de mortalidade geral.
Os três mais importantes estudos que deram suporte aos
atuais guidelines que recomendam o uso profilático de CDI neste cenário foram
desenvolvidos no final dos anos 90 e início dos anos 2000 e publicados entre
2004 e 2005 e, muito embora apresentem resultados favoráveis ao benefício do
CDI, foram conduzidos em pacientes cuja terapêutica para a insuficiência
cardíaca não encontrava-se devidamente otimizada com os recursos terapêuticos
que dispomos hoje.
O mais clássico
destes estudos, o SCD-HeFT, já citado anteriormente em nosso blog (aqui), até mostrou benefício significantivo na redução da
mortalidade geral, mas além de representar uma análise de subgrupo (já que
metade dos pacientes eram isquêmicos e a outra metade, não-isquêmicos), incluiu
pacientes que não estavam no topo da terapia clínica: apenas 69% da amostra
usava betabloqueadores, somente 20% usava espironolactona e nenhum paciente
havia recebido terapia de ressincronização. Outros dois estudos, o COMPANION e o DEFINITE
também apresentaram resultados positivos para o CDI na redução de morte súbita
cardíaca, mas igualmente ao SCD-HeFT,
apresentaram diversos pontos de questionamentos acerca da otimização da terapia
clínica. Em nenhum desses 3 estudos a terapia de ressincronização foi
utilizada.
Então o DANISH trial resolveu mostrar o quão impactante é a
profilaxia primária com CDI nos portadores de IC não isquêmica a longo prazo. Randomizou os pacientes portadores de Insuficiência
Cardíaca não isquêmica de 5 centros da Dinamarca, com CF NYHA II a IV e elegíveis
para o uso de CDI, em terapia clínica otimizada, incluindo portadores de
ressincronizador cardíaco ou com indicação de ressincronização, para receberem CDI
profilaticamente ou apenas tratamento clínico e serem acompanhados entre 2008 e
2014 para avaliar a mortalidade geral
(desfecho primário: morte por qualquer causa). Também avaliou secundariamente:
morte súbita cardíaca, morte cardiovascular, PCR abortada, taquicardia
ventricular e mudança na avaliação de qualidade de vida. E ainda avaliou como desfechos de segurança: a
ocorrência de infecção do dispositivo e eventos adversos.
Para excluir etiologia isquêmica, utilizou majoritariamente a realização
de cateterismo cardíaco (97%), aceitando também a realização de estudo
cintilográfico ou a angio-TC de coronárias. Permitiu a presença de até 2
estenoses coronarianas, contanto que não fossem clinicamente expressivas. Os pacientes deveriam ter FE ≤ 35%, NT-pro-BNP
> 200 pg/ml, com uso de dose máxima tolerada de IECA/ BRA e betabloqueadores
e, quando indicado, em uso de ressincronizador.
Um total de 1116 pacientes integraram o estudo. 556 dos
quais receberam CDI profilaticamente, enquanto outros 560 foram alocados no
grupo controle para receber apenas a terapia clínica ótima. Em ambos os grupos,
58% dos pacientes foram ressincronizados. O implante dos dispositivos, quando
indicados, deveria ocorrer em até 4 semanas após a randomização. Todos os
pacientes foram reavaliados no 2º mês e a cada 6 meses até o final do estudo.
O DANISH foi um estudo negativo e o resultado causou um
certo furor no meio médico. No desfecho primário de morte por qualquer causa,
não houve diferença estatisticamente significante entre a terapia clínica e a
profilaxia com CDI a longo prazo ( Hazard Ratio 0,87 – 95% IC: 0,68-1,12.
P=0,28). Também não houve diferença significante com relação à morte por causas
cardiovasculares ( HR 0,77 – 95% IC:0,57 – 1,05. P=0,10), mas houve uma redução
na ocorrência de morte súbita cardíaca (um dos desfechos secundários) com NNT =
25 (HR 0,50 – 95% IC : 0,31-0,82. P=0,005). Estes resultados se mantiveram de
forma homogênea em todos os subgrupos analisados, exceto no subgrupo de
pacientes mais jovens (< 59 anos). Não houve diferença na avaliação entre
pacientes ressincronizados e não-ressincronizados.
O estudo DANISH foi um trabalho metodologicamente bem
executado, com resultados consistentes e que causou surpresa após a sua
publicação. Mas será que ele é mesmo tão surpreendente assim? À luz das
evidências científicas, ele apenas vem provar o que já se sabia: que ao contrário
da IC de origem isquêmica - cujo substrato arritmogênico determina uma grande
incidência de morte súbita por arritmias, as IC não isquêmicas não se comportam
da mesma forma, sendo os focos arritmogênicos menos frequentes e com menor
expressão clínica. Que a principal causa de morte nesses pacientes se deve por
evolução da própria disfunção cardíaca e que isto o CDI não consegue retardar.
Que é a terapia clínica otimizada o principal meio de desacelerar a evolução
natural da insuficiência cardíaca não isquêmica.
Também fica claro que, uma vez prevenindo a morte súbita
cardíaca, o efeito final do CDI profilático em alguns casos acaba sendo trocar
a morte súbita pela morte por disfunção cardíaca, já que a progressão da doença
é inexorável e a médio e longo prazo a mortalidade geral não se altera.
Entretanto, neste contexto, em alguns pacientes, acrescentamos uma piora substancial na qualidade de
vida até o desfecho letal, com a ocorrência - muitas vezes frequente - de
eventos elétricos tão desconfortáveis quanto a própria morte.
Finalmente, o estudo mostrou que 31% dos óbitos registrados
foram por causas não cardíacas e que os pacientes mais jovens (< 60 anos) tendem
a se beneficiar da profilaxia primária a
longo prazo. Isto é óbvio, se considerarmos que os pacientes mais idosos
possuem mais doenças com potencial de evoluir para óbito e que os pacientes
mais jovens possuem maior expectativa de vida com o tratamento clínico,
beneficiando-se, em ultima instância da profilaxia de morte súbita que o CDI
lhes confere.
Reza a lenda que os alquimistas chineses, no afã de
descobrirem compostos que prolongassem ou eternizassem a vida, sintetizaram a
pólvora – a que chamavam “remédio de fogo”. Não demorou muito para que descobrissem
que suas propriedades explosivas e seu potencial de destruição deveriam ser
empregados criteriosamente, sob pena de transformarem a “busca pela longevidade”
em um grande martírio. Analogamente, O DANISH não foi definitivamente a “descoberta
da pólvora”, mas talvez possamos encará-lo como a descoberta de “como usar a
pólvora” de maneira criteriosa, racional e individualizada.
A grande mensagem deste estudo é quanto ao uso racional do
CDI. Faz-se necessário alisar em qual contexto e em qual cenário clínico
devemos empregá-lo, muito mais do que seguir fielmente aos guidelines. Utilizar
um dispositivo de alto custo requer a premissa básica de que ele não será
utilizado inutilmente e não determinará ao seu usuário o prolongamento
desnecessário do sofrimento. Está claro
o seu benefício em prevenir a morte súbita cardíaca por causas arrítmicas; cabe
a nós, médicos, ponderar em quais indivíduos a magnitude deste benefício
justificará o seu custo.
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Parabéns Martinho, excelente explanação e análise crítica dos resultados!
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Obrigada, Patrick!
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