Caro leitor, te faço uma pergunta: você faria este estudo? Quando fui interrogada a este respeito, minha resposta foi sim, pois estudos prévios sugerem interação medicamentosa da morfina com inibidor da P2Y12, podendo retardar a absorção e atenuar o efeito antiplaquetário deste medicamento tão importante. Além do mais, morfina tem sido recomendada para o tratamento da dor torácica aguda em pacientes com síndromes coronarianas agudas (SCA) desde o início do século XX, mesmo não havendo estudo que demonstre segurança clínica nesta população.
Em janeiro de 2020 o artigo supracitado foi publicado no JACC1. Os autores testaram a hipótese de que o uso concomitante de morfina e clopidogrel está associado a um maior risco de eventos isquêmicos cardíacos. Para tal, utilizaram a base de dados do EARLY – ACS2 (N= 9.406 pacientes), tratando-se portanto de uma sub- análise post hoc.
Neste artigo avaliaram 5.438 pacientes (cerca de 60% da população do EARLY-ACS) com SCA sem supra de ST que receberam clopidogrel antes de serem submetidos ao cateterismo. Foram divididos em dois grupos: uso de morfina pré-randomização (11,3%) e os que não usaram morfina (88,7%). Também avaliaram outro grupo, chamado controle negativo, com N= 3.462 (11,8% uso de morfina versus 88,2% sem uso de morfina), sendo que neste último os pacientes não usaram clopidogrel. Os autores demonstraram que o uso de morfina concomitante ao clopidogrel aumentou em 40% os eventos isquêmicos (principalmente infarto peri- procedimento). Já em pacientes que não receberam clopidogrel junto com a morfina, não houve nenhum sinal de aumento de eventos.
Faremos agora a segunda pergunta: devemos abolir o uso de morfina associada ao clopidogrel em pacientes com SCA? Achamos que NÃO pelas seguintes razões: 1. Trata-se de um estudo observacional no qual não podemos estabelecer uma relação causal definitiva. Esses resultados podem estar relacionados a fatores de confusão. Fazendo uma análise simplista não utilizamos morfina de forma rotineira para tratamento de SCA, a não ser em casos de persistência da dor após uso do nitrato. Poderíamos inferir então que estamos diante de pacientes mais graves e, portanto, com maior probabilidade de eventos isquêmicos recorrentes! O resultado então não seria a associação morfina x clopidogrel mais o fato de estarmos diante de uma população de maior gravidade. 2. Os autores encontraram uma associação significativa entre o uso de morfina e desfechos entre os pacientes pré-tratados com clopidogrel e nenhuma associação no grupo controle negativo. 3. Por ser uma sub analise os autores não conseguiram avaliar o tempo exato da administração da morfina e clopidogrel. 4. O número baixo de morte impede qualquer conclusão definitiva. 5. Por fim, aumento do risco de 40%, um grande aumento, nos parece improvável de estar relacionada apenas a associação morfina x clopidogrel.
Consideramos ser pouco provável que tenhamos um ensaio clinico desenhado para testar essa hipótese. Senso assim como devemos agir? Nossa conclusão não deve implicar em evitarmos o uso de morfina, mas sim utilizarmos a individualização e usarmos o opioide, não de forma rotineira, mas naqueles casos de persistência da dor apesar da terapia médica adequada, considerando o resultado da suposta associação entre morfina e aumento da incidência de desfechos negativos. Esta deve ser mais uma informação em nosso processo de decisão mental.
Referências:
- Furtado RHM, Nicolau JC, Guo J, et al. Morphine and Cardiovascular Outcomes Among Patients With
Non-ST-Segment Elevation Acute Coronary Syndromes Undergoing Coronary Angiography. J Am Coll
Cardiol. 2020;75(3):289-300. doi:10.1016/j.jacc.2019.11.035
- Giugliano RP, Newby LK, Harrington RA, et al. The Early Glycoprotein IIb/IIIa Inhibition in Non-ST-
Segment Elevation Acute Coronary Syndrome (EARLY ACS) trial: A randomized placebo-controlled trial evaluating the clinical benefits of early front-loaded eptifibatide in the treatment of patients with non-ST-segment elevation acute coronary syndrome-Study design and rationale. Am Heart J. 2005;149(6):994-1002. doi:10.1016/j.ahj.2005.03.029
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