Posso beber doutor?
Meu paciente com fibrilação atrial paroxística questiona: posso beber doutor?
A fibrilação atrial (FA) é a arritmia mais comum em adultos sendo rotulada por alguns especialistas com uma “epidemia”. Atualmente com prevalência em torno de 3% em adultos com idade > 20 anos e previsão de aumento importante (100%) nas próximas 4 décadas. Diversos artigos observacionais identificam vários fatores de risco para o desenvolvimento de FA, dentre eles o consumo de álcool.
A associação entre aumento do consumo de álcool e FA foi descrita pela primeira vez em 1978 por Ettinger, surgindo a denominação tão conhecida por todos nós: Síndrome do Coração do Pós Feriado (Holiday Heart Syndrome). Os autores descreveram aumento de internações devido a arritmias após consumo de bebidas alcoólicas nos feriados e finais de semana. Estudos posteriores apontam para um possível efeito linear da ingestão de álcool e FA. Em um deles, realizado na Suécia, prospectivo, com 79.019 participantes sem FA, demonstrou aumento de 14 a 39% no risco de desenvolvimento de FA para indivíduos que consomem mais de 14 drinks (188g de álcool) por semana, quando comparados com aqueles que bebem menos de 01 drink (12g de álcool). Parece haver um efeito dependente da dose, resumindo: 01 drink por dia está associado a um aumento de 8%.
Desde então, passamos a associar o uso de álcool a fibrilação atrial. Vale a pena nos questionar: essa associação é real? A resposta todos nós já sabemos: os dados sobre a associação de álcool e fibrilação atrial são observacionais e, portanto, passiveis aos efeitos de confusão. A maioria de nós considerava impossível a realização de um ensaio clínico testando álcool e FA. Pois bem, Aleksandr Voskoboinik e cols publicaram na NEJM, em Janeiro 2020, o ensaio clínico intitulado: Alcohol Abstinence in Drinkers with Atrial Fibrillation.
Dos 140 pacientes, 70 foram randomizados para o grupo de abstinência alcoólica e 70 para o grupo controle. O grupo abstinência reduziu com sucesso a ingestão de álcool de 16,8 ± 7,7 drinks por semana para 2,1 ± 3,7 drinks por semana (redução de 87,5%), com abstinência total de álcool alcançada em 61% dos pacientes. No grupo controle houve redução da ingestão de bebidas de 16,4 ± 6,9 para 13,2 ± 6,5 drinks por semana (redução de 19,5%). A abstinência de álcool foi associada a uma redução modesta no peso (3,7 kg), bem como na redução da pressão arterial sistólica e diastólica. Após 6 meses de acompanhamento, a recorrência e carga de fibrilação atrial foi significativamente reduzida no grupo de abstinência. O estudo foi bem desenhado e conduzido e a adesão dos participantes a redução ao uso de álcool foi alta.
Bingo!!!! Podemos afirmar agora, com base nesse elegante artigo, que FA está associada ao uso de álcool!
Vamos por parte detalhando algumas importantes limitações:
1. Pequeno tamanho amostral – tamanho amostral calculado sobre a hipótese de redução de 66% do risco relativo – alta probabilidade de erro tipo I.
2. Consumo de álcool moderado a alto no início do estudo – os resultados seriam os mesmos em pacientes com menor consumo de álcool?
3. Carga baixa de FA (<2%) – os resultados seriam os mesmos em pacientes com alta carga de FA?
4. Follow up de apenas 6 meses – inicialmente desenhado para 12 meses, mas por dificuldade de recrutamento foi reduzido para 6 meses (os participantes pontuaram a dificuldade de manutenção da abstinência por 12 meses).
5. Viés de mensuração: população heterógena com uso de diferentes dispositivos para detecção da arritmia.
6. População selecionada e motivada – os pacientes com arritmias desencadeadas por uso de álcool podem ter sido super-representados.
7. Redução de peso e pressão arterial – impacto na incidência de FA.
8. Viés de recordação: o relato de uso de álcool pelos pacientes.
9. Diferenças no tratamento da recorrência.
10. Estudo aberto está sujeito a viés de performance.
Se o meu paciente hoje questionasse sobre o uso de álcool como irei responder: acho que usaria a famosa frase de Oscar Wilde: “Tudo com moderação, incluindo a moderação”.
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