Uso de dupla mamária em cirurgia de revascularização: rotina ou em casos especiais?



Pergunto a você caro leitor: quando pensar em utilizar enxerto bilateral da artéria mamária em paciente que irá ser submetido a cirurgia de revascularização do miocárdio? 

Alguns irão refletir sobre o  risco de complicações, principalmente relacionadas ao aumento de infecção do esterno e questionar o cirurgião optando por esta técnica em pacientes mais jovens, magros e sem diabetes mellitus, dentre outras características. 

Alguns irão recordar o estudo ART (Randomized Trial of Bilateral versus Single Internal-Thoracic-Artery Grafts)1. O ART trial, publicado em 2016, concluiu que, em pacientes submetidos a cirurgia de revascularização do miocárdio, não foi observado diferença significativa em desfechos clínicos (mortalidade, infarto do miocárdio e acidente vascular cerebral) entre enxerto único ou bilateral da artéria torácica interna em 05 anos de acompanhamento (análise interina). Assim como, Taggart e cols2, não encontraram benefício do enxerto bilateral na mortalidade por todas as causas aos 10 anos (20,3% vs 21,1% - HR:0.96 (95%IC: 0.82-1.12; p=0.62), end point primário, com notável 98% de follow-up. Os resultados foram consistentes nas análises dos subgrupos definidos de acordo com as características dos pacientes ou dos procedimentos. 

Isso significa que devemos deixar de indicar enxerto bilateral da artéria torácica interna (mamária)?    

Imediatamente nos perguntamos qual tem sido a prática dos nossos colegas cirurgiões? Faisal B Bakaen3, em artigo recente publicado no JACC, propõe modificação da estratégia cirúrgica com ênfase na escolha de tamanho do território a ser revascularizado ao invés do conduto a ser utilizado. Os autores, utilizando o banco de dados da Cleveland Clinic, de janeiro de 1972 à 2011, avaliaram 6127 pacientes submetidos a enxerto com dupla mamária. Estratificaram os pacientes em dois grupos de acordo com a quantidade de território perfundido (dominância - alcançar ápice do VE – coronária direita ou circunflexa): > 75% e < 75%. Relataram que o uso da segunda mamária em “artéria importante” (definida como aquela com > 75% de alcance terminal em direção ao ápice do ventrículo esquerdo) foi associado a melhor sobrevida a médio prazo quando comparado ao uso da uma única artéria torácica interna. Por outro lado, enxertar uma segunda artéria torácica interna em vaso de menor “importância” foi associado a um risco maior de mortalidade operatória (2.4% vs0,51%; p=0.007). Sendo assim, os autores propõem a utilização da segunda mamária quando a artéria a ser revascularizada seja dominante, modificando a estratégia cirurgia para alvo (área sob risco) e não conduto (veia ou artéria) a ser utlizada. Fato a ser mencionado, dos quase 60000 pacientes analisados no banco de dados apenas 6127 (10,57%) receberam duas artérias torácicas internas em 25 anos com desfecho clínico em 353 pacientes! Ou seja, devemos considerar o resultado como exploratório e não tirar nenhuma conclusão com base nos dados apresentados. De qualquer forma, o autor lança uma nova forma de pensar: alvo e não conduto




Voltando a nossa pergunta: devemos parar de pensar em propor artéria torácica bilateral como estratégia de revascularização? Precisamos considerar os seguintes fatos antes de responder a esse questionamento: os estudos observacionais sugerem benefício do enxerto duplo em pacientes jovens e com expectativa de vida longa. Porém o ART trial, em análise de subgrupo, não mostrou interação entre idade e desfechos, apesar de tendência a benefício após 07 anos de seguimento. A taxa de cross-over, no ART trial, foi considerada elevada, especialmente entre os cirurgiões com pouca experiência.  Esse achado enfatiza o conceito de ser um procedimento que não deve ser realizado por cirurgiões menos experientes com a técnica. Outro dado importante é de que mais do que 24% dos pacientes designados para 01 mamária receberam outro enxerto arterial e cerca de 16% não receberam o tratamento proposto no grupo de dupla mamária. Não foi surpresa de que a taxa de desfechos no grupo de múltiplos enxertos arteriais, em comparação com o grupo único de enxerto arterial, na análise as-treated, foi quase idêntica à taxa em estudos observacionais, ou seja, observado benefício do uso de múltiplos enxertos arteriais. 

Para resumir: estudos observacionais apoiam o uso de múltiplos enxertos arteriais, porém sabemos da fragilidade deste tipo de analise: efeitos de confusão, viés de alocação, performance, etc. Por outro lado, o maior ensaio clínico randomizado tem limitações metodológicas que podem explicar seu resultado. 

Sugerimos aguardar o resultado do ROMA trial (Randomization of Single versus Multiple Arterial Grafts), desenhado com o intuito de corrigir as limitações do ART trial. Até lá, a melhor opção, será discutir caso a caso com sua equipe, enfatizando que dupla mamária deve ser apenas lembrada em pacientes jovens, com baixo risco de complicações e realizada por equipe com experiência em múltiplos enxertos arteriais.  




Referências:
1.     Taggart DP, Altman DG, Gray AM, et al. Randomized trial of bilateral versus single internal-thoracic-artery grafts. N Engl J Med 2016; 375: 2540-2549. 
2.     Taggart DP, Benedetto U, Gerry S, et al. Bilateral versus single internal-thoracic-artery grafts at 10 years. N Engl J Med 2019; 380: 437-446.
3.     Bakaeen FG, Ravichandren K, Blackstone EH, et al. Coronary artery target anatomy and survival after bilateral internal thoracic artery grafting. J Am Coll Cardiol 2020; 75: 258–268. 


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