Série Insuficiência Cardíaca: RALES - urina, hormônio ou panaceia?
O quarto
artigo da série “Insuficiência Cardíaca”, publicado em 1999 na NEJM, abre uma
pertinente discussão acerca do mecanismo pelo qual a espironolactona impactaria
positivamente na redução de mortalidade e internamentos na população de pacientes
com IC grave. Seria este potencial benefício mediado por bloqueio da ação da
aldosterona, culminando em efeitos em eixos neuro-humorais com todas as
implicações fisiológicas conhecidas? Ou a verdade por trás de um benefício tão
esplendoroso seria a muito mais simples ideia de que reduzir volemia salva
pacientes com IC?
Filosofias e
reflexões à parte, o estudo se propôs a testar a hipótese de que a adição de
espironolactona à terapia padrão vigente na época (inibidor de ECA e
diuréticos) reduziria mortalidade por qualquer causa e internamentos por IC. O
conceito foi provado com uma confirmação da hipótese alternativa, restando o
crivo da crítica médica sobre o que foi publicado.
O protocolo do
RALES foi adequado: ensaio clínico, multicêntrico, duplo-cego, placebo
controlado, análise de mortalidade por intenção de tratar. Cálculo amostral
considerando uma mortalidade até menor do que a encontrada (38% esperada, 46%
encontrada), uma redução relativa do risco de 17%, semelhante a encontrada no
estudo SOLVD, com um poder de 90% e alfa de 5%.
A primeira
falha ocorreu quando cerca de 25% de toda a população deixou o tratamento ao
longo do seguimento, de forma equiparável entre os braços. Mas pelo modelo de
intenção de tratar, tal acontecimento tenderia a prejudicar o braço da
espironolactona, já que o efeito do placebo seria “nenhum”. Dessa forma, caso a
rejeição da hipótese nula acontecesse, essa seria muito mais robusta.
A segunda
falha ocorreu com o truncamento do estudo baseado numa redução de mortalidade
expressiva encontrada no 24º mês de seguimento, o que, como já discutido em
críticas a estudos anteriores dessa série, pode superestimar o benefício da
droga testada pela privação do fenômeno de regressão à média. Isso acontece ao
se interromper um estudo precocemente, quando não foram contabilizados
desfechos suficientes para haver precisão nos achados, o que pode ser percebido
em análise de reduções relativas de risco com intervalos de confiança muito
amplos, em que a droga se encontra num intervalo que pode contemplar desde a
descoberta da pólvora ao fiasco científico.
Isto também
não aconteceu neste estudo, pois houve nada menos do que 670 mortes, um número
bastante expressivo e muito superior a estudos anteriores com repercussão maior
na literatura médica da época. Do ponto de vista de desfechos, não podemos
atribuir ao truncamento qualquer razão para invalidação dos resultados.
Foram registradas
386 mortes no grupo placebo (46% de desfechos) contra 284 no grupo
espironolactona (35%), uma redução relativa de risco de 30% (IC 95% 18%-40%) e
uma redução absoluta do risco de 11%, o que presenteia o tratamento para
insuficiência cardíaca com um NNT de 09, um dos melhores de toda a cardiologia
e talvez da medicina como um todo.
Finalmente,
não se pode esquecer a principal preocupação da adição da espironolactona à
terapia padrão (IECA) – hipercalemia. Embora de conhecimento geral na
comunidade médica que a associação dessas duas classes de fármacos tem um
potencial para desencadear tal distúrbio eletrolítico, houve uma incidência ínfima
deste efeito adverso (1% no grupo placebo contra 2% no grupo espironolactona).
Frente a uma disparidade entre o que é documentado e o que se vê, uma
explicação reside no teor protecionista dos critérios de exclusão em grandes
ensaios clínicos, os quais são desenhados para investigar mais eficácia do que
segurança. Em outras palavras, no mundo real acontece uma extrapolação menos
criteriosa e somos por vezes complacentes demais com adequação dos nossos
paciente a uma terapia, e o que acontece é a fuga do perfil de segurança desta.
Finalizando, é
importante ressaltar que o benefício da espironolactona foi constatado numa
população que já usava inibidor de ECA, uma terapia que já demonstrou redução
de mortalidade com um NNT de 22, considerado muito bom. Sendo assim, por
otimização de volemia ou por inibição neuro-humoral, o fato é os paciente com
IC com FEVE < 35% e a série “Insuficiência Cardíaca” ganham mais um forte
aliado.
Muito bom! Excelente crítica.
ResponderExcluirAdorei essa matéria, é algo que gosto de acompanhar.
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