A visão do CHA2DS2-VASc corrigida pela lente dinamarquesa






                A anticoagulação dos pacientes com fibrilação atrial está sustentada no risco de eventos embólicos (particularmente de acidente vascular cerebral - AVC) atribuído a esta arritmia, principalmente quando associados a fatores de risco bastante conhecidos, como idade, insuficiência cardíaca, diabetes, hipertensão e passado de AVC. Na tentativa de aperfeiçoar a indicação desta terapia, escores de risco foram criados para estratificar o risco de eventos embólicos conforme as comorbidades do doente, sendo o primeiro deles o famoso CHADS2.
                Este score tem uma capacidade limitada de predizer o futuro, como qualquer escore de avaliação prognóstica, e por esse motivo um novo score entrou em cena – o CHA2DS2-VASC. O estudo do qual derivou esta ferramenta é bastante questionável em termos de qualidade metodológica: poucos pacientes (cerca de 7000), risco de eventos de acordo com a pontuação do score com intervalo de confiança muito amplo a ponto de se interporem (ou seja, sem calibração alguma), criado a partir de pacientes que já recebiam terapia anticoagulante. Mesmo com todas essas críticas, foi considerado como de maior capacidade discriminatória do que o CHADS2 para pacientes de baixo risco, com uma estatística-C igual. Uma análise de uma imagem embaçada.
                Em 2011, um estudo da BMJ pôs à prova essa panaceia. Usando a base de dados do registro nacional dinamarquês, fez uma análise retrospectiva de 73000 pacientes com fibrilação atrial que não receberam terapia anticoagulante e comparou na mesma população o CHADS2 e o CHA2DS2-VASC com o intúito de comparar a capacidade preditora de cada um deles. O pequeno delito deste estudo está no fato de que as coleta de todos os dados (comorbidades, tratamento, desfechos) foi feita de forma retrospectiva, e portanto sujeita a vieses, como o de aferição. Um deslise que pode ser considerado compensado pela majestosidade do tamanho amostral, que permitiu uma grande quantidade de desfechos e intervalos de confiança bastante consistentes. O desfecho primário foi internamento ou morte por tromboembolismo pulmonar, AVC ou embolia arterial.
                As taxas de eventos de acordo com a pontuação do CHADS2 foi bem linear – o incremento de risco pelo score acarretou uma maior taxa de eventos. Isso já era conhecido. O dado novo provido por este estudo foi a curva também linear de progressão de eventos conforme incremento de risco pelo VASC, algo que até então se tinha com bastante imprecisão e com muita interposição.
                Com uma curva mais acurada do risco de acordo com o VASC, foi possível ter a percepção de que, de fato, as estatísticas-C dos dois scores são iguais (área abaixo da curva de 0,804 para o CHADS vs 0,792 para o VASC). Agora sim, uma análise de uma imagem nítida. No entanto, a conclusão do estudo se pauta na curva ROC dos scores analisados por grupos (baixo, intermediário e alto riscos) para afirmar que o novo score tem uma maior capacidade preditora do que o antigo (área abaixo da curva de 0,812 para o CHADS vs 0,888 para o VASC). Tal afirmação não se sustenta, pois ao se agrupar num mesmo grupo vários pontos, o que se obtém é o risco médio daquele grupo. A avaliação da curva ROC de scores de risco deve ser feita na forma de variáveis contínuas e não categóricas.
Algo que reforça essa ideia é o interessante fenômeno de reclassificação para pelo menos um nível acima de grande parcela da população do estudo ao se comparar o CHA2DS2-VASC em relação ao CHADS2 – 60% dos CHADS2 baixo risco (score 0) foram pelo menos moderado risco no VASC (score 1) e mais de 90% dos CHADS2 moderado risco (score 1) foram considerados alto risco pelo VASC (score 2 ou mais). No entanto, tanta reclassificação não acarretou uma melhor estatística-C do VASC nem numa maior taxa de eventos nos pacientes considerados de alto risco pelo VASC, o que sugere que a maior parte dessa reclassificação foi inadequada.
                Outra conclusão tirada pelos autores é a de que o VASC tem uma maior capacidade discriminatória para os pacientes de baixo risco, os chamados “verdadeiro baixo risco”. De fato, os paciente considerados como de baixo risco pelo VASC tiveram cerca de 50% menor risco de eventos que o CHADS baixo risco [HR 0,66 (IC 95% 0,57-0,76) vs HR 1,24 (IC 95% 1,16-1,33), respectivamente]. Aí pode residir a grande utilidade deste score.
                Como comentando em postagem anterior desse blog, a ideia predominante é a de que deve-se anticoagular o máximo de pacientes possível (claro, os que tiverem indicação), já que o risco de eventos ainda que pequeno, ponderado ao longo de décadas, torna-se muito magnificado. Neste cenário, uma ferramenta que discrimina tão bem os pacientes de baixo risco pode ser bastante interessante para as exceções em que se pensa na conduta mais conservadora. Nos demais, o CHADS está muito bem indicado.

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